Derrelição (der-re-li-ção) s. f. derrelição: desamparo; abandono de coisa móvel com a intenção de não mais a ter para si: o corpo.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
indo & vindo
A casa era de madeira. A toalha branca guardou a gordura e a poeira do último encontro.
Quando houvera luz, jantávamos, te oferecia cartas, filmes, cigarros, cama; e o fim da noite vinha, recebido como um abraço sob a coberta que não aquecia.
Talvez demonstre um sorriso transparente; o tato envelhecido das coisas. Ando com frio, na ausência, sem luz.
O cheiro ia se perdendo no vai e vem constante do respirar; começava uma nova fase sem sentir-se; sem marco, sem istmo. O como desvencilhar o sinto das coisas quentes; o alisar macio, agora, sem mãos; o transmitir sem a passagem.
Havia maneira de ir além de não querer isto? De negar-se simplesmente ao aqui e agora? Não havia mais imagem a refletir, não quis, não relembrei, não senti gosto de saudade.
A chama tremeluz, bruxuleando a sombra perseverante das coisas íntimas que inexistem sobre a toalha branco-encardida e madeira velha.
As folham silenciaram ao sopro frouxo do vento, o tempo levou tudo. E porque deixaste vela toalha casa e eu? Sabes que o teor da espera tende a ser eterno quando não há meios de sobrepô-la, ainda que o tato ferisse em desespero o tudo que partia e partia e retornava indo mais do que vindo; mas não era nem sabido. Como na vida em que sempre se dorme (...)
Uma vela, um resto, uma casa de madeira, uma toalha. São conseqüências.
Nada mais do que isto.
aceita-me
Minha mãe... Por favor, mamãezinha...
Na primeira vez te encontrei numa pequena caixa que guardava algumas surpresas com
cheiro de verniz. Reluzia a luz sem brilho da madeira opaca de que era feita.
Quis pegá-la e tê-la e doar-me e pertencer-lhe: assim seríamos como nos foi
designado.
Passaram-te uma nova camada de luz; todavia, o verniz era fino demais e tuas primeiras
farpas dilaceraram meus dedos de algodão. Dedos filiais de algodão.
Não pude brincar, mamãe. Não pude desfazer-me do enovelado que nos tornamos;
não quisera sair da tua pequenina caixa, pois era certo que, a mim
seguir-se-iam desamparo e vergonha fora de ti. Certamente, pensaste que não
iria me ferir porque a tudo observou distante em si: o prosseguir sem pernas da
minha vida.
Mas, observadora eu fui. E de tanto olhar-te escondendo-me em meu pecado
amorfo, descobri que não vivias sozinha. Na caixinha havia muitos outros
companheiros semelhantes a ti; uns corriam porque não gostariam que soubessem
que nada possuíam além de lascas; outros, nada falavam absortos num belo corpo
cinzelado. Nada mais.
Percebi-me espectadora e então, fielmente, acompanhei teus hábitos, tuas
palavras por hora açucaradas por hora acres; mas como segredo nosso: eu sempre
soube que, o imo da tua fala era carne crua, morta e sem gosto. Era madeira.
Amiúde traguei teus valores opacos e tua incrível semelhança com o que lhe
deveria ser alheio. Isso me foi regra. Mas o tempo fazia-se penoso e por muitas
vezes insultei, na minha condição vil, o espelho que me refletia.
Por que sou frágil (...) porque alvura, porque a falta de vértice (...)
Sob o julgo da infância, doei em felicidade extrema muitos pedaços de minha maciez;
dava-me a velhos, transeuntes, feirantes, mendigos, moças da vida... me eram
companhia, me eram escuta e abraço. Assim souberam que, apesar do embaraço e da
leveza em mim, tinha, também, um coração. Um coração extrínseco. Havia como
sê-lo e eu o era. Mas não podia mais fragmentar meu corpo, já quase não me
reconhecia; era terrível querer transmitir-me e ter de silenciar em devota
omissão.
Fui vivendo, mamãe, medindo teu quotidiano quadrado, como o apreciava; queria
deixar a não forma perante a ti e a todos.
Com o tempo notei que ao meu redor, tácitos e afetuosamente faltos, alguns poucos
habitantes (para não dizer sobreviventes), usavam muitas roupas; e isto aprendi
no passado posto que tinha de haver algum modo de conviver e resistir à vida
com seres muito simpáticos, mas de juntas muito duras e pele por demais
espinhosa. As farpas.
Aproximei-me de meus semelhantes, também muito ordinários de olhos empoçados e
ternos. Mostrei-lhes a cara surrada. Estávamos entre nós. Trocamos coberturas
depois de muita conversa e reconhecimento. Não senti dor, não houve ferimento.
Às vezes recebia mais do que dava ou poderia ter dado sem sequer demonstrar
premência.
Cresci.
Os tempos vindouros chegaram. Era tarde. Quis tanto te ter por perto mamãe,
acarinhei tuas farpas, tua rusticidade, quis me adequar à tua vida terçã.
Mergulhei na tua caixinha, embevecida, querendo-te materna, abandonei alegria e
sentido de ser que tão bem me fizeram do lado de fora de ti. Mas algo sempre me
esteve errado. Sentia-me sombria e ordinária ainda que o teu verbo não
acompanhasse tua atitude ou vice-versa. Doeu-me fundo ter desonrado o teu
madeirame bruto e suado com minha vaga delicadeza. Mas escrevo-lhe agora,
mamãe, porque não mais suportarei os repelões tão comuns a vocês, mas que tanto
ferem a mim.
A cada tentativa, apenas ten-ta-ti-vas de respeito ou amor incondicional,
arrancavam-me opulentos tufos de lágrimas e desterro. Vinham-me da alma, se
digna eu fui para ter uma alma. Perdão por tudo, mamãezinha, mas não pude
permanecer em esfacelamento nas gretas de corpos como o teu, desconhecida como
sujeira dentre irregularidade de madeira nobre.
Receba minhas palavras como misericórdia. Busquei entendimento na idade da tua
aparência, nas formalidades da tua palavra, nos teus olhos que pareciam vivos.
E se por ventura um irmão nascer, desditoso como eu a você, lhe rogo de joelhos,
mamãe, que permita lixarem a tua madeira. E o aceita.
mansamente pastam as ovelhas (incompleto)
Se sou ovelha, pastor não tenho. A ordem há muito tempo, dele, se perdeu. Quede percepção, quede minha comida, meu alento. Mansidão e encontro? Como? Sem guia, sem companhia, sem fé na porcaria de amanhã, que o pastor ausente insiste em dizer que além de ser dia, é novo (...)
Bom mesmo deve ser o tempo. Ser o tempo. Passa logo: cada vez menos de si para nós, cada vez mais de nós para si. O tempo é o bom pastor, o pastor que empurra e oprime com mãos invisíveis e tato irreal. O tempo é boa ovelha, metódica, ansiã de espírito, que sabe ser efêmera como o tempo de sua vida e não hesita em correr e correr: devoção & languidez eternos. Ser o tempo, oras. Pastar mansamente sob o cajado de si mesmo, no mato ou no chão batido, no ar fresco ou no sol férvido, faminta ou saciada.
Seria isso auto-controle, abnegação ou derrelição de si mesmo, do si matéria, do si intangível, perante o desânimo do trágico e enfadonho quo-ti-di-a-no?
Ser, apenas. Sem rumo, sem palavra, sem predestinação ou pós-loucura.
Afinal, pastor tempo e ovelhas? Mas não são as perguntas o alimento do mundo? Como se viveu até hoje, eu não soube de ninguém que comesse ou bebesse somente lançando perguntas; mas que ganharam o pão e o sim como respostas.
Devia haver respeito e sentido mútuo nas coisas. Como se além da alma própria, também possuíssemos uma consciência coletiva, subentendida nas relações que permeiam o tempo, pastor, ovelha e vice-versa.
Talvez por isso o pastor, além de ser mágico, possui mãos luminosas. Somente o pastor que compreende o tempo, pode ser mágico. Logo suas mãos são luminosas ao sabor de seu querer, e suas ovelhas, certamente seriam estrelas, ou raios, ou qualquer coisa que brilhasse, exigindo cuidado e energia no trato diário.
O tempo não é sortilégio, é aprendizado e desentendimento.
O pastor não é sábio ou sagrado, mas simples, muito sofreu.
As ovelhas não são estrelas ou luz, mas apenas testes advindos do aprendizado, resultando em simplicidade e, assim, harmonia & ponto final.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
comumnidade
munições & cadáveres.
a vida não é nada além de um óbvio sonho humano.
vive-se, e isto já basta. acordar é morrer, por isso existem tantos cegos.
vendar-se é uma opção, não se outorga ignorância. mas omitir-se, ainda é sinônimo de paz então abortemos as palavras, amorteçamos a violência das súplicas.
abnegação. e a introspecção, que esta seja uma prece.
enfim, já sei o que é ser. talvez não seja nada, mas prefiro acreditar que já possa ser alguma coisa essa vontade de nada ser. silêncio. volições. silêncio.
é isso, na-da-ser. silêncio.
domingo, 20 de setembro de 2009
ensaio I
Não posso. Isto me é impossível.
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
digam-lhe
Rogo aos mares e brado aos ventos, na
tentativa incansável de justificar esta brutal paganice de meu cerne. Uma
volição me aplaca, colérica, fazendo-me cegar em lucidez intangível a qualquer
mão complacente ou olhar receoso de pena justa, por todo o mal consumado e
percebido sobre o pequenino e indefeso próximo.
Flutuo, libérrima, sob oceanos repletos de remissão e amor adolescente,
tateando entrega e senilidade em completa devoção.
Contemplei estática o que desde muitos sonhos, desde muitos corpos, vinha
buscando violentamente na doce e frágil convicção de que me pertencia a verdade
incondicional sobre o amor.
E assim foram-me impostas luzes tremeluzentes como toda e qualquer possibilidade
de visão, e me cumpriu espremer os olhos, lacrimejantes em resignação na
penumbra da injustiça e restrição de um consentimento leigo: assim seja, Pai.
E indagando sobre qual espécie de superioridade possuo desdobrando-se em
numerosas faces quanto se possam figurar fundamentadas na incerteza de um
engano é que, por todos os lados, enxergo abandono e cólera. Não pude
esquivar-me antes de deparar com incansáveis abismos onde, em queda, sentia meu
sangue arrebentar comprimindo-me as veias num pranto de criança em desalento.
Estou em pesar.
Estou tristíssima.
Fui incumbida de permanecer silenciosa às luzes incertas e à remissão alheia,
como condição única no perseguir do milagre de que necessito para me completar;
e então, finalmente, entregar-me ao sortilégio de todo o mal que me velou
distante.
Pergunto o porquê de tantos repuxos e feridas latentes ante a espera do
infinito prometido numa tarde de sol em desvario; porque tanta dor, tanto
sofrimento e súplicas num peito que só fez vida ainda que inexpressiva. Num
peito que fez fé a um pico distante e nublado tido por alguns, como paz.
Apenas ódio e muito pecado afloraram em minha humilde seara. Lágrimas gotejaram
em desespero do vórtice insurgido de amor, agora exausto e cambaleante a
percorrer o longo caminho.
A ânsia me foi abortada. Fui compelida a torcer até o último suor ardente, a
pele de uma criança.
A pele de uma menininha.
Há rugas na face de uma menininha.
Há vociferações nos olhos fundos de uma menininha.
Há morte no lençol e palidez nas cores, que permeiam os sonhos de uma
menininha.
E se alguma esperança se edificou na vagueza dolosa de um futuro a vir, foi
porque a enganaram nas armadilhas de um presente em necessidade, dado como mera
prova na participação de um ser humano. O momento em que é roubada a dignidade
tenra de uma alma: a imprestável condição de somente ser um humano.
Sinto como sente aquele a quem foi dado o mergulhar-se. E que encontrou um
vácuo surdo e repleto de erro. Isto também restou.
Restou o imperdoável pecado de ainda não saber, e nada ter além da piedade por
saber-se, justamente, que nada se sabe sobre a vida.
Calo-me.
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
vão da porta
Antes de palavra, forte palavra, encantamento e línguas; mostra-me.
Flagra-me sentada numa poltrona, lendo Goethe em desterro à escuridão sombreada – cafés e cigarros.
Bata na porta. Dispa-me no susto da tua batida; assim me sinto quando lhe percebo: somente a pele.
E então escorro até a porta – não, antes recolho livros e guimbas velhas pelos becos, incensos e santinhos, sumindo com tudo, enfiando os óculos no armário, o tapete roto ajeito com o pé e, então, abro-a. Espio teus olhos espremidos, assim implorando, assim adentrando e logo me empurro pra algum canto e te dou a entrada.
Você não entra. Fica ali, duro, encarando meu devo-ou-não-devo, enquanto navega no vácuo do entrar-ou-desaparecer. Devagar palpito. Olho teus olhos, já não tens corpo, está impalpável a não ser pelos olhos. Ensaio palavras – en-tre-es-ta-va-es-pe-ran-do-por-fa-vor - e tudo o que me sai são uns olhos esbugalhados e fixos.
Acabo de me lembrar que estou sem calças. Que calcinha eu vesti? Não posso abaixar-me para olhar, não há pescoço nem movimento. "Será a esburacada de 90?", penso. Pelo menos tive bom senso e vesti um camisetão, bem recortado. (...)
Permaneço estática. Penso no cheiro do meu apartamento, penso no que o canto dos olhos dele capta, onde meu corpo não ocupa no vão da porta. Uma poltrona suja? O cinzeiro? Filmes, cartas relidas? Não sei.
A partir daqueles olhos negros, já não tenho casa, passado ou esquecimento. Estou como quem está encapado, mas, pela chuva. Ensopa-me pesando o corpo de tal modo que não consigo mexer o dedo do pé, que neste momento arde nervosamente, pela má distribuição do peso nos membros. Devo estar curva, claro, como poderia estar?
Oh, lembrei-me de que me despiram na sala. Fitava-me nua, minhas curvas incertas e sobressalências, pelos fartos e estranhamente distribuídos. Assim me vias.
Sinto que ele se move. Aproximando e a cada passo deixa consigo uma peça, um vinho tomado dantes, um telefonema. Posso despregar tua pele se quiser, penso e logo calo minha auto-denúncia, ele ouviu meu silêncio. Deixe-me somente o suor, ele sussurra no estreito espaço que agora separa nossas bocas.
Ergue os braços lentamente, quase não percebo, quando toca meu quadril. Tem as mãos quentes e tépidas. Por um instante, deito os olhos no corpo frente ao meu, peito, umbigo e.
Como num solavanco, meus olhos sobressaltam-se e, cabeça-acabeça, nariz-a-nariz. Ele tem olhos, agora, não serenos, mas como jabuticabas. Sim, ele tem olhos aflitos, percebo de leve.
Num longo minuto nos encaramos. Dava para sentir o sangue vibrando. Quis entrar e sentar-me, amêndoas e jabuticabas.
Menino, como te quero, pensava no fundo de toda aquela eternidade no vão da porta escancarada.
Notei, satisfeita, que minhas mãos estavam em seus ombros. Ombros e braços, deslizando lentos e oscilando no calor da pele. Pontadas ferventes em meus seios (...) mas sua boca estava diante da minha, relando e faiscando o desejo. Talvez se nos encostássemos um pouco mais, haveria um estouro. Poderia despedaçar-me ali.
Quando já haviam se passado horas, quando já estavam completamente sugadas até a secura, as jabuticabas, senti gotejar-me a nuca. E então como uma premonição, como uma entrega, como um sentido, ele veio com seus cabelos de cetim; sua boca tocou cálida meu rosto, depois deslizou até meu ombro e ali permaneceu. Tinha os braços agora em minhas costas, pele e unhas. Cheirava a baunilha, o cetim delicado. Enlacei-o como enlaçaria um filho com medo do mundo. E lentamente, flutuando sem saber se ainda tinha pés e pernas, o fui trazendo para dentro de mim, meu sofá arrebentado, minhas guimbas, meus pelos, minhas palavras aleijadas, meu recanto sujo.
Ele não tinha nada além de um poço infindo que marcava seu peito. Eu, nada tinha além da minha miséria e amor empoeirado na estante.
Pedi que me mostrasse, depois da língua, encantamento e palavras trocadas com força. Ele mostrou-me o peito. Assustada, olhei ao redor, haviam lodo, tijolos ensebados e água pingando. Observei-me. Sorri.
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
D.
Assim me chamas, assim me entendo. ME entendo, porque não fui eu quem observou, portanto tem valor.
Devo ser uma garrafa.
De uma bebida ruim.
Que pertenceu a uma prostituta.
"I call you beautiful". Mas você não tinha.
Não arisca, não arredia, não viva, não casta. Não sou assim.
Me adjetive cada vez mais e mais me construa com os restos que sobraram no fundo da tua gaveta, ou.
Não faça nada. Misture o passado nas sobras de uma feira qualquer e o dê a quem nada tem.
É o que preciso.
as janelas
Permita-me ver, ainda tenho olhos.
A terra, o lodo, a escuridão, recobrindo meu corpo (...) Mas eu imploro, me deixem os olhos. Que o tempo endureça que os vermes comam, que minha alma se perca, mas, ainda assim, os olhos.
Como janelas de uma casa, grande ou pequena, habitada ou solitária, com andares, um cômodo (...)
Sempre haverá o fio, o tenro fio, ainda que em outra dimensão, profundidade ou universo, a janela, sim, unindo o meu, o teu, o dele, o inverno a pobreza, a fome.
A janela também a tudo vê. Como imagina todos os olhos, todos os parapeitos, todas as súplicas e rugas na testa; ela está ali. Unindo-nos.
Se você grita, eu te ouço... talvez. Mas te vejo. Tua boca aberta, teu horror, olhos aflitos e inflamados.Não toque meus olhos. Se derrubares meu corpo, se matares minhas convicções ou família, minhas idéias ou cúmplices, meu amor ou peito pulsante, leve tudo, deixe somente o espaço que ocupei ou nem isso, qualquer coisa, até as lembranças, mas me deixe os olhos, as mãos do espírito ainda tateando tudo o que há luz e resignado-se na sombra, já que é eterno e imutável; só fui sou e serei meus olhos.
Pode ir dizendo que limitei demais as coisas, o que será das pernas ou sentidos, ou cheiro, pele, sexo e som.Se me conheceu, onde afundou-se ao jurar-me? Onde se fixou ao repreender-me? O que dilacerou tua noite, quando foste dormir amargo sem compreender o porquê daquilo? O que te perseguiu em cada existência tua, quando esta se deu conta de que a minha havia partido? Par-ti-do?
Foram meus olhos. Olhos alagadiços.
As janelas da casa que edifiquei com o que de melhor eu possuía, ainda que não fosse desprovida de falha e cômodos inacabados, foi tudo, tudo o que pude fazer até cair exausta. E foram os mesmos olhos que fechei, ao lhe entregar este extremo de mim. Também os abri resoluta e inteiramente encaixada ao monte de nada que restou. Mas aí, você abriu as janelas da tua nova morada e a tua riqueza humilde me sorriu. Escancarou-se à minha miséria. Teus olhos se ligaram aos meus, por isso te quis dentro. Tão dentro, mesmo que eu precisasse sair e sucumbir à sarjeta.
Basta-me olhar ao espelho; tua respiração ir e voltar, tua comida queimando, teus pés descalços... não as feche. As janelas.
sábado, 1 de agosto de 2009
semi-diálogo de portas
- Sim?- me diga Thomas, o que é? Gripe?
-Talvez... Já tomei um chá de hortelã, depois gengibre, me disseram que é ótimo - tossiu pesadamente, virou-se de lado e fechou os olhos.
-Está deitado?- Ela pergunta, um pouco vã, nervosamente vã.
-Estou, estou morto – ele exagera demais, gay demais, imbecil demais.
-Entendo... Por que me chamou de amor?- ela atira, acendendo um cigarro pra tentar calma.
-Por que você o é para...
-Pare!- Carla berra, aliviando-se. - Thomas senta na cama, acende uma luz amarelada no criado-mudo, toma um gole de rum.
-Não entendi- replica Thomas, cinicamente estafado.
-Oh, você entende sim, nós dois entendemos o tempo todo, e nos fazemos de bestas, o-mis-sos (...)
-Acalme-se.
-Não! Desta vez não...
depois que.
Queria sair dali, queria ela, a outra, o seu complemento (...)
Estava sozinha, doente, estática.
-Eu a amo. Não como mais, não durmo, não sobrevivo.
-Deixa o tempo...
-Do que você está falando agora?
-Estou com outra e...
-Cale-se!
-Mas eu te amo, te quero.
-Case-se comigo, me cure, me socialize com você mesma.
-Acalme-se.
-Não há calma, não há nada, estou morrendo! –Enfatizou a morte como saída para convalescência. Queria morrer de fato, por ser gay, por não tê-la, por estar sozinha no mundo.
Havia vômito e papéis amassados ao seu redor. Rugas. Cigarros mal terminados e uma escuridão dentro e fora de si.
Queria escrever algo que fizesse para salvar suas vidas. Pensava que palavras tinham algum poder, e depois daquela poesia, nada mais lhe saiu. A arte também havia partido, com sua vida, seus cabelos e sua alusão de paz, já inexistente.
Na verdade, sabia que nada mais voltaria. Nada. Não entendia o tempo e porque havia tomado tento desse amor somente depois de pisá-lo. Por que não lhe entregou, porque aceitou, porque prometeu castelos e a deixou sem as pernas (...)
quinta-feira, 30 de julho de 2009
quarta-feira, 29 de julho de 2009
sobre (o) amor
A imobilidade me fez crer e ser. Crer no que desejei e ser o que pensei.
Tudo está tão quieto nesta noite, os cães dormem, pai mãe e irmãs vagando em sonhos e eu, veemente em pensar. Penso em você. O vejo em tempos vindouros, dividindo o silêncio de uma noite, a cumplicidade palpitante de uma cama, o preenchimento de um sorriso, a liberdade de uma gargalhada... comigo.
Você há em tudo o que existe e não há perspectiva fora da tua vigia: tudo lhe possui, se visto com meus olhos.
Já nos vi em tardes exaustar, envolvidas em beijos suados e clementes; já nos vi em meio a crianças, doces frutos da cerejeira que plantamos com sementes juradas em noites de amor eterno; lágrimas que escorreram e, você bebeu, quando beijou meu sorriso e assim o captou.
Acredito que amor seja mais um transbordamento, acima de qualquer outra coisa. Uma constância mútua. Não me refiro a doenças incuráveis, debilidade e sentimentos nefastos.
A cura para o amor é a troca dele. O doar, o prostrar-se, desde que a mão amada venha arrebatar a alma dilacerada pelo grito rogado e não percebido.
Sinto-me bem falando de amor contigo, mesmo que não saibas que estou a lhe escrever.
Não quero que penses mal. Não anseio prender-lhe ou sufocar nossa sementinha. Ela germinou e isso me basta para todos os dias dar-lhe água, poesias e preces. Compartilho com ela tua ausência. Talvez, se dela crescer uma árvore, que seja a maior e mais frondosa e que em seu tronco robusto, esteja grafado todo o amor permutado.
Não consigo dormir. Ando extasiada demais para concentrar-me em sono ou livro. Sinto-me largada ao horizonte interminável de um quarto sem sonhos. Sentei-me à cabeceira. Aproximei os joelhos do peito e ouvi a música. A música. Sempre dizendo que sou louca por chorar ou por te amar, chamando-lhe a mim desesperadamente. É uma dor boa se sentir, te faz arder.
Chamo a ti. Um pedido que insurge de meu cerne e busca diretamente o seu. Não quero despertar teus olhos sonolentos, nem espreguiçar tuas palavras... Apenas penetrar surdamente, no vão dos teus seios, ali, onde guardas o bem mais precioso e adormecer. Teu pensamento em mim, apesar de toda a sua vida e seu quotidiano. Um leve sorriso brotará em tua face, teu coração sorri! Aquece-me.
Visitar-te-ei em espírito para dormir com o teu sereno e único. Sentirás, quando eu adentrar teu quarto. Haverá uma presença pronunciada pelo calor febril que me perpetua até os germes. Somente isso e a canção. Sou louca por te amar e chamo-te na noite. Assim, aproximo-me. Assim me percebes. Teu corpo, agora, inerte e extático.
Já passou. Já passou, meu amor. O que é o corpo senão escravo de um mundo pequeno. O que é da imagem sem a visão. Um nada é sem o outro. Um submetido é, naturalmente, ao outro. Portanto, não me atenho a sentidos, não, quando não os posso conter em minhas circunstâncias. Em meus braços.
Sei que estás dormindo, dando a teu corpo o tempo para refazer-te – como queria ter na boca teu hálito matinal; como queria desbravar teus caminhos ferventes com minhas mãos; tua expressão cálida, mal iluminada pela lua. Tua cor castanho-clara, revivendo meu branco-amarelado – mas, regozijo-me em saber, também, que nos reconhecemos, no mundo. Recordei-te, talvez de outra vida ou eternidade - demos mais um laço.
Sorverei teu sono sublime e derramarei em teu corpo, o bálsamo e a devoção do meu ser pelo teu. O que meu ser é com o teu, quando abertos, quando perdidos, você dentro de mim e eu dentro de você. O transmutamento.
Silencio-me agora.
terça-feira, 28 de julho de 2009
o frio
Numa das tardes de inverno, dessas que transcorrem das manhãs perdendo as cores, sentei-me defronte a um piano. Senti os pensamentos confusos, perfurando-me os poros obstruídos pelo pó que a inércia acumulou. Tal efusão remeteu-me uma valsa perolada daqueles dias em que o sol nasce e não há espaço no quarto para ele. Há uma presença ali que me coube no tenro diamante cinza da noite dormida em outro corpo e o sonho me buscou sereno, falando baixinho. Deu-me a mão, sentamo-nos nas colinas que cultivara em silêncio, nos observamos entre sopros e sorvedouros, entre cigarros e beijos. Guardo-o desde menina quando me via presa no espelho turvo do cotidiano; a cada dia mais como ele, quando cria que era mais como eu.
Abri os olhos. Havia não o amarelo claro, mas uma prata derramada em meu corpo. A cor e o ar frio que penetravam da janela era o sol ressentido, porque suas cores estavam do lado de fora da porta. A casa se deteve reluzente e satisfeita, sorrindo em resignação. A música perolada continuou a oscilar em nossa pele. Era uma valsa, talvez. Uma narrativa do pensamento que o desejo se empenhou e tornar real. Visível a corpo e olhos. Havia forma de alguma maneira, pois sentia suas cores, agora transpostas, vibrando sob minha pele. Abri os olhos. Era ele.
sábado, 13 de junho de 2009
parafraseando a vida:
O que seria a ausência se não a falta, o não estar.
O que seria a falta se não o amor no vão do silêncio invisível.
O que seria do amor sem o ter.
Não dizendo ter como ter, apenas. Mas sim, a posse.
Posse dum olhar numa noite, durante uma música lenta, poesia e café.
Posse dum corpo, mas não desabitado, ainda.
Mas somente antes da troca.
Esta é uma outra história.
terça-feira, 9 de junho de 2009
fancy
nudez
Esta meticulosidade falsa, acabrunhada de homens velhos, perfidamente amáveis, numa gentileza cínica, conservadorista. Isto para mim é animal selvagem, combatendo para tentar lugar na civilização. Não se pode criar anjos em meio à bestas mundanas.
Mordo e assopro. Como e vomito.
Ações maniqueístas, purulentas e disfarçadas de cotidiano, fatos imutáveis pelo tempo já que assim foram pressupostos.O inferno é vizinho. É amigo. É a duplicidade individualista, voraz...
decomposição humana
Isto deve ser algo recente. Algum fator evolutivo da espécie que não acompanhei, algo como fluídos vitais industrializados, caros como a felicidade. Ou talvez não seja sede, oh sim, é erupção faraônica que eclode, lentamente, dentro do corpo em algum lugar que não dói, algo como ansiedade, expectativas sobre um fantasma visto, nalgum daqueles contos de fadas que aludem à vida real; nossa obscura opção de renunciar a tenra tepidez da infância, para nos atirarmos voluntariamente à decomposição contínua dos croquis humanos, futuramente denominados “adultos”.
Anseio por um amanhã pouco mais elucidado, mais convivível, que possibilite ao menos um segundo de paz. É isto. Não é saudade, não é fome, nem dor, nem ferida. É a urgência do querer pelo que virá.
medo
Preciso de dinheiro,
Preciso de um banheiro.
Um quarto fechado,
Um breu impenetrável,
Um segredo inquebrável,
Que nenhum quebranto
Invada e liquefaça.
Meu pranto e minha altura,
A minha ternura ferida,
O meu brio por um fio,
Um adereço vil.
À luz dos pobres homens,
Que tantas mulheres comem
Para faturar números vazios,
Sovando-se em desvarios,
Constantes de solidão.
saturação
As mudanças estão tão vagarosas... o mesmo homem de ontem, não o suporto, estará aqui em vinte minutos.
Já tentei telefonar milhões de vezes e aquela mesma voz inaudível, da secretária eletrônica, vem arrepiar meus pelos e cerrar meus dentes de desespero.
Eu queria me incendiar para não ter de esperar a insatisfatória visita. Toda a verborragia imatura, dele, novamente estará roçando meus tímpanos e, o miolo do meu cérebro se comprimirá a um grãozinho, rebelde e transtornado. Sinto muito sono agora. Minhas mãos automaticamente escrevem e escrevem e meus olhos estão grossos de areia sonífera. Nem mesmo a fome amarga que faz roncar minha barriga, consegue fazer com que eu me levante e coma.
E ainda esta piedade horrível que tenho se rebaixou a dó, bem ralé mesmo, e por ser assim tão humilhante é que vou tentar calçar os chinelos e sair com ele.
(...)
prolixidade
como um veneno lento
É quando a treva resplandece em discórdia e recai sobre os olhos, agora, fundos como oceanos já sem vida.
Treva fugidia como amor distante, treva por si só amante dos que desvanecem em solidão. Novamente há uma espera dentro dum buraco. Talvez a chuva caia, inunda meus pés e flutue; sarjetas tateando meu corpo largado já sem dor. Cristo!
Nem uma luz pequenina iluminando o indecifrável, nem uma palavra que possa me servir de norte, uma ternura longínqua, uma migalha...
Olhos, agora, de resignação. Ajoelho-me e rogo um terço de compaixão? (...) Devo sovar-me. Qual é o sentido de tudo se não a vagueza, a morbidez.
Domingos são como a morte de uma semana inteira em devoção. Que entrega é essa a absolutamente coisa nenhuma que sorrisos, que sonhos, que excentricidade em querer tanto ser o inverso do que irrefutavelmente se é. Deus, porque essa vergonha, essa imundície em escala humana, porque essa voracidade pela dor e agora essa rejeição, como se em minha pele houvessem feridas que um medicamento só faz dilacerar... Olhos vazios.
Onde está o motivo, onde está você, mulher (...) Sinto-me um bueiro soterrado sob areia fina e branca. Tenho medo de ventos novos, fortes, medo das rajadas que a utopia de se querer uma felicidade pode trazer; pode mostrar a minha viva carne decompositora e enfim, morrer sem remissão.
Tudo o que disser agora, serão memórias. Optei por não viver e a vida continua garfando minhas saídas redundantes e covardes.
Você entende que eu só queria amar? Que queria ser a brusca mulher que inspirou as poesias e que de fato as merecia? Mas não desejaria o cais de um domingo negro em penitência, não desejaria esta dor quieta que, paralisa aos poucos meu corpo, como um lento veneno.
tanto mar
Não fui tua filha nem tua amante. Tenho sido uma porta na tua alma pagã, uma ponte para o caos convalescente aqui de dentro. E os pássaros descosturaram o dia, a noite trouxe livros e trapos meus perdidos em estrelas desconhecidas onde você se escondeu, ainda dentro de mim. Como vou me refazer agora?
Devolva-me, ou abra minha boca e profundezas do meu corpo e adentre tua morada, teu repouso e as vísceras que tanto busca.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
ilhada III
Há uma pequena aura infantil, como se soubesse demais, sendo humana o suficiente, para chorar todas as noites em desolação.
Uma imagem perdida entre tantas outras, translúcidas em formas descontínuas. Aqui, o tempo é medido em emoção, laceração e prova.
Restou a essência queimando como um círio sombrio e amarelado, até as luzes voltarem e o musgo tornar-se uma outra vida, menos rastejante.
E tudo isso é um transe, compreende, fumamos silenciosos, nos olhando sem pensar, no vazio completo transcendendo entre nós. O meu e o teu amor, estão nus. Tua pele respira e te assopro distante, pro meu ar não viciar nesta dor hednica que se sente antes da ardência insuportável.
Sei que depois deste corredor devasso, já vou te encontrar e segurar tuas mãos pequenas. Ecoarão sinos de resignação e uma paz final, um blues triste e aflito, como gostamos um silêncio, um vento frio afagando nosso abraço quase penetrante e amortecendo o terrível medo de não pode sentir o teu pescoço curto, tuas costas estreitas. Os teus pelos, teu fluido, teu sentir e o que mais houver me pertencem, teus cabelos, teu abismo e teu sexo.
E o teu “ser” cósmico, teu a tudo querer, todos os olhos abertos, simultâneos, teu verbo confuso, cuspido, desnorteado e vivo. E meu.
ilhada II
Talvez lhe faltem feridas incuráveis destruindo, perfurando como pregos à pele teus sentimentos, vazando todo o excesso, até restar somente o amor que andava solto demais, enfermo e cambaleante quedando em qualquer porta.
Acorrentarei tuas artérias paralisando teu sangue até quase não restar vida, para então, transpor a minha na tua. Tentar edificar um corpo com nossos restos ainda pulsantes.
E amanhecerá meu amor, haverá muita luz no pouco verde das ruas; é a tua paz inundando o quarto e além.
Haverá ao teu lado, uma carne morna e braços como torres sob tuas quedas e asas nos teus saltos. Irá chorar de amor ao ler algo mal escrito no espelho, com um batom velho na manhã. E depois fará amor comigo, nos olharemos nos olhos, e em meu lânguido corpo branco, se espremerá, abandonando sua face exausta em meu colo, tragando meu cheiro de hormônio, ânsia e entrega.
Acordarás cedo, notando as feridas eróticas do amor, deixadas em brasa vibrando em misericórdia, para cuidá-las como nunca antes, porque eu as fiz com a violência senil do meu querer, do pudor que não tive nada tenho além de palavras e versos que lhe fazem dormir, latência e orgulho por eu ser tua e você, meu.
ilhada I
Não, não me diga nada, te olho nos olhos e ouço tuas expressões como nuvens precedentes da tempestade.
E quando bater à porta e me perceber, possuirá meus movimentos, meu sangue e minha sanidade, de costas, sem me tocar, entregue a memórias de um passado inexistente, desejo e urgência.
Tudo o que tiver de dizer, ecoará do teu pensamento às minhas orações e correrei ao teu encontro, cega, sem vida, a perder-me nos teus braços, tê-los como meus, teus dedos quentes e minuciosos. Sorverei o vapor da tua saliva quente, sedante, até sentir em meu corpo o teu calor e a tua doença, me desvendando até os espinhos; espinhos de ilusões que jamais poderão firmar-se como ações, sentimentos petrificados em ausência e corredores sem flores nem fôlego, apenas breu, fantasia e silêncio.
Mas lhe terei imerso em meus poros, serei teu suor fresco e teu perfume, completarei tuas palavras como se a minha e a tua alma confundidas estivessem, nalgum lugar além de nós.
durma, vizinho
Venha dormir comigo, vizinho. Você é o pai e eu tua filha, ou o bispo e a concubina. Ou somos limpos ou imundos. Não podemos simplesmente trocar as máscaras? Nada vai mudar, ainda não presto e você fichou o inferno. Irmão e irmã, que seja puro, não visceral, mas durma comigo burguês, durma de meia, abrace-me sem maldade, fique mole como uma bixa que talvez seja, mas não me perfure. Somente dê-me tua mão quente na noite fria e selvagem, escuridão e medo. Você me protege? Pode me olhar enquanto me banho, deixe-me vendar os olhos para ainda lhe ter como um bom rapaz. Mas me proteja vizinho pereça, mas que seja ao meu lado, somente hoje e na voz da solidão, seus berros e remos da noite adiantando a marcha na melancolia bela e profunda dos oceanos estrelados azul-negro. Afunde em mim, lhe salvarei pela mesma mão quente em júbilo, mortos juntos afogados em nós mesmos. Perdoe-me. Preciso da tua mão, braços e calor. Orelhas abrigadas sob respiração de homem tenso. Proteja-me, vizinho.
onde dorme o íntimo dos homens..
Era algo como unhas deslizando uma camada abaixo da pele, mas não havia dor, sentia como se sente o escalpelo cortar a pele amortecida pela anestesia.
Talvez eu fosse um inseto disfarçado de humano, e estes tremores e limitações físicas fossem a fase de muda que antecederia uma nova personalidade. Mas não, eu não era um artrópode, era simplesmente humana, um ente pensante, confuso e desprotegido, e talvez esta sensação fosse um desespero guardado, hermeticamente, dentro de alguma profundeza minha que esteve sob o seu limite e precisava desmoronar para sair, emergir daqui de dentro deste pântano de depressão, que se tornou meu corpo.
O que estava frente a meus olhos, era o dilúvio de desejos, anseios, alegrias e tristezas, eu estava vibrando intensamente na freqüência das paredes do quarto e, elas penetravam suas ondas em minha fronte aberta, silenciosamente, prolongando-se por dias, acomodando-se na minha invalidez, estendendo-se a meses com picos antagônicos de sentimentos perdidos...
Foi a primeira vez que me deparei com a vida desvencilhada dos contos de fadas e bosques insones. Eu era criança velha antes de avançar à adolescência. Foi por isso que desconheci o que adentrava meu campo etéreo. Aquilo era birra de criança órfã que fugiu da cela sombria e, este vale lamacento e oculto, esteve proliferando dentro de mim.
“je ami, petit doceur... mon ame te, mon liesse, mon soleil...”
Dos meus olhos enxergava o teu umbigo, teu quadril estreito, cheirando a saliva deixada por minha língua, que ainda conserva o teu gosto. Era como se me tivesse parido há poucos instantes, após muito sofrer, e eu nasci, explodindo num gozo. E então me dei conta, de que tudo o que precisava a partir daquele momento, era estar ali, inerte, silenciosamente abandonada àquele homem, que me semeou dentro de si e, quando pronto, me expeliu consigo mesmo vivendo em cada vão do meu corpo. Em cada poro havia derramado a sua lei, bebi da tua boca o que mais tarde seriam os meus sorrisos e foi pelos teus olhos que os meus, tão próximos, aprenderam a derramar tórridas lágrimas tão doces.
Permanecemos ali, na eternidade que cada minuto buscava no desejo senil que tínhamos de jamais permitir o amanhecer daquela noite.
Até perceber que na verdade, havíamos escolhido dormir para sempre e assim, somente acordar, eu nos teus olhos e você nos meus.
sábado, 6 de junho de 2009
sobre a grande dor...
O que me paralisa não é o cansaço pelo excesso de movimento, mas a inércia diante de tanto pensar, tanto planejar o que jamais conseguiria traçar nalgum papel. Inércia. As expressões dizem o que? Que quero doer onde? Quero que alguém perceba essa dor? Não quero. Apenas que o sol nasce e morre e eu não o vejo, não o enxergo nessa escuridão turva, ruidosa e egoísta que me coloquei e, agora, como sair?
É a paz, andou por aí e nunca a consegui enlaçar, nem ternura, nem nada concreto o bastante para aguentar os repuxos que, certamente, viriam com uma emoção. O furor de uma emoção.
Sobre a grande dor, calar-me-ei.
quinta-feira, 4 de junho de 2009
sorria coração
Já passou o sentimento inerte, silencioso, covarde, maldito súdito queimou a minha cara orgulhosa, o meu brio, desgraçado, nunca mais rastejo por você. E ainda que sem escolhas eu vá parar de encontro a uma parede, que me espanquem, arranquem as vértebras, levem tudo, Deus como poderá isto se repetir novamente?
Realmente, nunca entenderei que tirará você dos teus feitos grandiosamente vazios, estes seios fantasiosos, fartos desta realidade infantil que você criou, infelizmente docinho, não existe haver sem dor, sinto muito, irá padecer crua, mórbida e fria, porque tem medo de renascer sem a covardia ridícula que você insiste ser defesa.
Defenda-se, evite tudo o que pode retirar esta sua superioridade que só existe nos teus olhos, afaste-se do que lhe faz desacreditar do conto de fadas da tua cabeça, desta redoma inútil que te faz fechar os olhos para não sofrer, te faz silenciar para dentro de si mesma, cuidado para não escorrer, você não vai escorrer, não te deixam, esta frieza programada já alastrou até o coração, e você não se envergonha de ser pueril, Deus, tenha piedade!
Prontifique-se a esquecer a minha loucura, ela vai para longe, vai pescar peixes os quais não pode comer, a tua carne tinha veneno e eu o bebi, suguei teu sangue e talvez seja por isso que você secou desta forma. Mas vai ver, engordará como um porco na ceia, um animal selvagem e ignorante cheio de si, vai assar como um franguinho e lamberão os dedos, satisfeitos pelo teu fim.
mulher
I
invisível
II
Who?
superlixo
Hey, querido, há um abismo de tentações entre nós, há umas porras de livros lidos e dissimulados, muita maconha, muita dor. Olha, não precisa mesmo lamentar e ouvir Alicia o tempo todo entre cigarros e café forte, você realmente é velho, velho o bastante para alegar que esqueceu como amar ou que não lhe amam mais, meu, eu sei que isso tudo é este escapismo que te domina e te prende a alguma droga de passado que não quer passar simplesmente porque gosta da tua carcaça que o revive nos teus aniversários.
A princípio, queria ser teu paraíso e o teu silêncio, mas jamais a tua paz transitiva, queria ser o teu vibrador, qualquer coisa que te consolasse e te possuísse. Sinto muito, mas a minha voragem virou amor mesmo, desse que você crê irrefutavelmente que morreu naquele acidente; mando-te uns recortes ou umas revistar científicas para que você não se esqueça que existem ainda oito bilhões e mais tantos seres humanos, tantos zeros que a tua cabeça pobre não entende; que existissem o triplo, eu quero ser a única tua, a tua presença, a tua cinza que você bate tão delicadamente no cinzeiro, ou até aquela merda de baseado que te faz bem.
Foi o teu aniversário e por um milagre divino de Jesusinho aqui, do meu escapulário, você atendeu este seu celular que ainda quebrarei num gozo cheio de murros. Me chame de princesa, delicia, diz que sou branquinha e tenho mil dons, não me importa, mas que droga, eu quero saber de você sem dotes, sem dinheiro sem esperança, quero bater à tua porta e te pegar desesperado, caído na cama esperando a morte.
Só não se importe se eu estiver tão fria e mórbida, se meus olhos estiverem enterrados nestas manchas companheiras, roxas e fundas. Eu não queria que me visse assim, mas são muitas contas e nenhum dinheiro, muito tesão e nunca sexo, e ainda repito, se eu devo ser tão péssima e tão cadente assim. Diga-me, você tem piedade de mim? Você pensa, pensa sobre o que? Talvez deva sorrir no espelho depois de ter cheirado todas e não precisa mais daquele chá amargo e daqueles cigarros que sempre acabam comigo, ou você seja uma máscara perfeita e sólida, fixada a super-bonder, de um super-herói, impossível se desfazer dela.
Bata a porta na minha cara, zombe dos meus poucos anos e do meu amor cretino, senil e a puta que o pariu. Mas se assim for, omita seus refluxos, finja que me adora que sou branquinha, cheirosinha e inteligentinha, me deixa servir pra alguma coisa sem sentido, diga-me que sumiu porque te roubaram, te estupraram e você estava em depressão, qualquer coisa, qualquer mentirinha me convence que sou uma florzinha ou um tempero no teu preto-e-branco mal passado.
Bata, mas bata com toda força tua cabeça, até não se lembrar de nada, nada mesmo, que fique babando ou sempre sério, assim, Supercarente, Superprecisando de uma privada ou uma mão grande e torta como a minha. Onde estão as drogas, amor?
pequenez
Silenciosamente levantou-se do chão e mirou-me de pé. Aproximou-se com passos curtos, sem cálculos – não me trazia nada além de olhos atrevidamente puxados, temerosos para abocanhar carne tão fresca. Fez-me gesto para afastar – naqueles olhos rasgados havia um mantra, uma macumba, como se somente os existisse com braços, tronco e pernas - naqueles olhos.
Afastei como um impulso que antecede uma foda, triunfante, extática, com – agora enormes, amendoados de intensidade castanha - estúpida-voráz – meus olhos em toda parte, gelatina branca e veias vermelhas como fogo queimando toda a memória anterior àquele hedonismo acéfalo – hesitante - paradise isn’t lost – is here.
Ergueu a perna direita, sorveu meu corpo gélido, sedento, sabia que eu a amava, amava como unidade, como uma doença terminal-tortura-redenção-metástase e morte. Intercalaram-se pernas, enormes, vadias intrincadas a outras tuas, pernas de mulher pequena, irritávelmente minúscula. Movimentava-se em intervalos metódicos, queria me cravar os dentes, comer minha sombra e luz, vomitar a si mesma dentro de mim, unidas pela carne, pela dor, pelo sexo urgente e ausência posterior já sentida, já prevista e consumada.
Vi a porta aberta, vulgar e desinteressada como eu, ali, cor-de-gelo, mórbida, imersa em cores, difusões e seios, quatro seios pontudos, rijos explodindo em silêncio e entrega.
Não sabia qual boca sugava nervosamente meu pescoço e artérias, lambendo minha orelha, meu pudor, minha sanidade; porra nenhuma de “pensamentos transcendentais”, aquela mulher pequenina domou Orion somente por tirar-lhe a camiseta, somente.
Pediu-me silêncio, seu corpo tórrido colado ao meu, olhou-me inerte, absorveu meus fluídos jactantes de gozo e dedos na calcinha. Queria que me beijasse com força, pelo amor de Deus me machuque com sangue empapando os lábios firmes, tépidos, desesperados, furiosa, me arranhe, rasgue toda a roupa, toda minha pele, me enfie três dedos de primeira para doer fundo e eu querer lhe decalcar em mim, lavar-lhe de saliva, cheiro de mulher vã em braços perniciosos, suor & hormônio (...).
Teu corpo morreu sobre o meu, teu anseio miserável, comedida, açoitou a noite que se descosturou, assim, do dia; ainda carrego-lhe pútrida, disforme; sozinha rastejando por mais um beijo frio ou um olhar turvo.
Mostrou-me o caminho da redenção, acabrunhada, suja, pagã e puta. Você desliza casta com passinhos amarrados e olhos espremidos, sempre arisca, sempre em fuga; talvez tenha tomado forma a tua covardia imbecil, molho de treva que me untou quando jazi naquela cama sem pensar, sem ponderar se algo poderia me fazer retornar à vida sem as seqüelas de um refluxo. Creio que não há. Você não há. Está aqui a tua carcaça fétida, o teu vazamento póstumo, a tua menstruação marrom, a tua pele amarelo-esverdeada e tua pequenez cretina.
mEUrda
O dia tem mais luz, sedante, engana qualquer tolo. Estou destroçada agora. Havia me esquecido da plena e fresca merda em que sempre residi. Aí você me fala sobre relevância, preponderância, mesmo que às vezes Clara, sabe, esquece que não dá pra emergir desta sujeira - um pontinho de luz na lama como uma pérola.
Eu te digo que cada um nada no seu monte, e se a tua merda está seca, tente fugir.
Mas poupe-me desse otimismo vesgo, você já está grandinho demais cara, pra esse moralismo salpicadinho de esperança, isso não existe. Faz tempo que todo mundo sabe, pandora só libertou o medo e é dele que proliferam estas jóias de vidro ai que se combinam em “tentar consolar o inconsolável”, toda essa porcaria de felicidade já pronta e tabelada.
E ainda tenho que acordar e assistir pessoas e maxilares doloridos de rir, essa dor é a vazão para não sucumbirem em covardia. Não, não sou forte, este é o problema. Não quero vencer a merda, não dá, tenho vontade de morrer ao mirar no espelho imagem tão fodida.
Quero que ela me cuspa traumatizada daqui, por talvez eu ter perfume demais, mas ela não fará isso, abro a boca e o chorume escorre latejando, denunciando-me inevitavelmente. Então, ela me compreende, tão merda que é, e me faz sentir sua continuação, assim, perfeitinhas para o mundo(?). Pois saiba que ninguém possui nada daqui, sequer a si mesmo; se ao menos entendessem a cólera e a contemplassem como frutos ainda verdes, seriam menos vagos-propriamente-ditos, mas todo mundo tem rabo e medo...
à beira do rio
Nós dois, o céu e a lua
Tua camisa furta-cor, teu cabelo como seda.
Mil borboletas vieram brilhando
Trouxeram-te imaculada
E pés beliscando pedras e terra, trêmulos,
Errantes, nossas mãos,
Juntas grossas enlaçadas a cetim
Mãos, as tuas, de boneca vivida;
Quadricularam-se as estampas
Noite escura sem detalhes, somente sardas,
Olhos verdes, olhos de mar onde desemboca o rio.
Meu sangue chorando nos encanamentos do teu corpo,
Minha febre nas tuas vísceras... amanheceu.
Cabelos castanhos já sentidos,
Bocas intocadas... ouço tuas palavras,
Teu hálito hiante, sorrisos perdidos;
Vivemos as lembranças, pisamos sonhos.
Pisamos solidão inundando nossos tornozelos;
E o tempo encadeou-se em teus dedos,
Teus pés levaram folhas molhadas,
Promessas e quadris unidos.
Já chorando e chorando meu coração,
Meu dizer de palavras surdas
No vácuo que o tempo deixou
Borrando as tuas cores ainda vivas na minha pele,
Derretendo em fogo e morte da noite,
Escorrendo até as margens do rio,
A caminho da queda nos teus olhos de cristal
Tua boca de pêssego, teu ar de jasmim;
O além do teu corpo que deságua no meu
Continuação dos meus ombros entrega
E eternidade.