quarta-feira, 5 de agosto de 2009

vão da porta

Homem... mostra-me.
Antes de palavra, forte palavra, encantamento e línguas; mostra-me.
Flagra-me sentada numa poltrona, lendo Goethe em desterro à escuridão sombreada – cafés e cigarros.

Bata na porta. Dispa-me no susto da tua batida; assim me sinto quando lhe percebo: somente a pele.

E então escorro até a porta – não, antes recolho livros e guimbas velhas pelos becos, incensos e santinhos, sumindo com tudo, enfiando os óculos no armário, o tapete roto ajeito com o pé e, então, abro-a. Espio teus olhos espremidos, assim implorando, assim adentrando e logo me empurro pra algum canto e te dou a entrada.
Você não entra. Fica ali, duro, encarando meu devo-ou-não-devo, enquanto navega no vácuo do entrar-ou-desaparecer. Devagar palpito. Olho teus olhos, já não tens corpo, está impalpável a não ser pelos olhos. Ensaio palavras – en-tre-es-ta-va-es-pe-ran-do-por-fa-vor - e tudo o que me sai são uns olhos esbugalhados e fixos.

Acabo de me lembrar que estou sem calças. Que calcinha eu vesti? Não posso abaixar-me para olhar, não há pescoço nem movimento. "Será a esburacada de 90?", penso. Pelo menos tive bom senso e vesti um camisetão, bem recortado. (...)
Permaneço estática. Penso no cheiro do meu apartamento, penso no que o canto dos olhos dele capta, onde meu corpo não ocupa no vão da porta. Uma poltrona suja? O cinzeiro? Filmes, cartas relidas? Não sei.

A partir daqueles olhos negros, já não tenho casa, passado ou esquecimento. Estou como quem está encapado, mas, pela chuva. Ensopa-me pesando o corpo de tal modo que não consigo mexer o dedo do pé, que neste momento arde nervosamente, pela má distribuição do peso nos membros. Devo estar curva, claro, como poderia estar?

Oh, lembrei-me de que me despiram na sala. Fitava-me nua, minhas curvas incertas e sobressalências, pelos fartos e estranhamente distribuídos. Assim me vias.
Sinto que ele se move. Aproximando e a cada passo deixa consigo uma peça, um vinho tomado dantes, um telefonema. Posso despregar tua pele se quiser, penso e logo calo minha auto-denúncia, ele ouviu meu silêncio. Deixe-me somente o suor, ele sussurra no estreito espaço que agora separa nossas bocas.
Ergue os braços lentamente, quase não percebo, quando toca meu quadril. Tem as mãos quentes e tépidas. Por um instante, deito os olhos no corpo frente ao meu, peito, umbigo e.
Como num solavanco, meus olhos sobressaltam-se e, cabeça-acabeça, nariz-a-nariz. Ele tem olhos, agora, não serenos, mas como jabuticabas. Sim, ele tem olhos aflitos, percebo de leve.
Num longo minuto nos encaramos. Dava para sentir o sangue vibrando. Quis entrar e sentar-me, amêndoas e jabuticabas.

Menino, como te quero, pensava no fundo de toda aquela eternidade no vão da porta escancarada.

Notei, satisfeita, que minhas mãos estavam em seus ombros. Ombros e braços, deslizando lentos e oscilando no calor da pele. Pontadas ferventes em meus seios (...) mas sua boca estava diante da minha, relando e faiscando o desejo. Talvez se nos encostássemos um pouco mais, haveria um estouro. Poderia despedaçar-me ali.

Quando já haviam se passado horas, quando já estavam completamente sugadas até a secura, as jabuticabas, senti gotejar-me a nuca. E então como uma premonição, como uma entrega, como um sentido, ele veio com seus cabelos de cetim; sua boca tocou cálida meu rosto, depois deslizou até meu ombro e ali permaneceu. Tinha os braços agora em minhas costas, pele e unhas. Cheirava a baunilha, o cetim delicado. Enlacei-o como enlaçaria um filho com medo do mundo. E lentamente, flutuando sem saber se ainda tinha pés e pernas, o fui trazendo para dentro de mim, meu sofá arrebentado, minhas guimbas, meus pelos, minhas palavras aleijadas, meu recanto sujo.

Ele não tinha nada além de um poço infindo que marcava seu peito. Eu, nada tinha além da minha miséria e amor empoeirado na estante.
Pedi que me mostrasse, depois da língua, encantamento e palavras trocadas com força. Ele mostrou-me o peito. Assustada, olhei ao redor, haviam lodo, tijolos ensebados e água pingando. Observei-me. Sorri.

Um comentário:

  1. Ainda acho que você deveria publicar um livro, não um, vários. Você é incrível!

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