quarta-feira, 14 de outubro de 2009

aceita-me

Minha mãe... Por favor, mamãezinha...


Na primeira vez te encontrei numa pequena caixa que guardava algumas surpresas com
cheiro de verniz. Reluzia a luz sem brilho da madeira opaca de que era feita.
Quis pegá-la e tê-la e doar-me e pertencer-lhe: assim seríamos como nos foi
designado.
Passaram-te uma nova camada de luz; todavia, o verniz era fino demais e tuas primeiras
farpas dilaceraram meus dedos de algodão. Dedos filiais de algodão.
Não pude brincar, mamãe. Não pude desfazer-me do enovelado que nos tornamos;
não quisera sair da tua pequenina caixa, pois era certo que, a mim
seguir-se-iam desamparo e vergonha fora de ti. Certamente, pensaste que não
iria me ferir porque a tudo observou distante em si: o prosseguir sem pernas da
minha vida.
Mas, observadora eu fui. E de tanto olhar-te escondendo-me em meu pecado
amorfo, descobri que não vivias sozinha. Na caixinha havia muitos outros
companheiros semelhantes a ti; uns corriam porque não gostariam que soubessem
que nada possuíam além de lascas; outros, nada falavam absortos num belo corpo
cinzelado. Nada mais.

Percebi-me espectadora e então, fielmente, acompanhei teus hábitos, tuas
palavras por hora açucaradas por hora acres; mas como segredo nosso: eu sempre
soube que, o imo da tua fala era carne crua, morta e sem gosto. Era madeira.
Amiúde traguei teus valores opacos e tua incrível semelhança com o que lhe
deveria ser alheio. Isso me foi regra. Mas o tempo fazia-se penoso e por muitas
vezes insultei, na minha condição vil, o espelho que me refletia.
Por que sou frágil (...) porque alvura, porque a falta de vértice (...)


Sob o julgo da infância, doei em felicidade extrema muitos pedaços de minha maciez;
dava-me a velhos, transeuntes, feirantes, mendigos, moças da vida... me eram
companhia, me eram escuta e abraço. Assim souberam que, apesar do embaraço e da
leveza em mim, tinha, também, um coração. Um coração extrínseco. Havia como
sê-lo e eu o era. Mas não podia mais fragmentar meu corpo, já quase não me
reconhecia; era terrível querer transmitir-me e ter de silenciar em devota
omissão.

Fui vivendo, mamãe, medindo teu quotidiano quadrado, como o apreciava; queria
deixar a não forma perante a ti e a todos.
Com o tempo notei que ao meu redor, tácitos e afetuosamente faltos, alguns poucos
habitantes (para não dizer sobreviventes), usavam muitas roupas; e isto aprendi
no passado posto que tinha de haver algum modo de conviver e resistir à vida
com seres muito simpáticos, mas de juntas muito duras e pele por demais
espinhosa. As farpas.
Aproximei-me de meus semelhantes, também muito ordinários de olhos empoçados e
ternos. Mostrei-lhes a cara surrada. Estávamos entre nós. Trocamos coberturas
depois de muita conversa e reconhecimento. Não senti dor, não houve ferimento.
Às vezes recebia mais do que dava ou poderia ter dado sem sequer demonstrar
premência.

Cresci.

Os tempos vindouros chegaram. Era tarde. Quis tanto te ter por perto mamãe,
acarinhei tuas farpas, tua rusticidade, quis me adequar à tua vida terçã.
Mergulhei na tua caixinha, embevecida, querendo-te materna, abandonei alegria e
sentido de ser que tão bem me fizeram do lado de fora de ti. Mas algo sempre me
esteve errado. Sentia-me sombria e ordinária ainda que o teu verbo não
acompanhasse tua atitude ou vice-versa. Doeu-me fundo ter desonrado o teu
madeirame bruto e suado com minha vaga delicadeza. Mas escrevo-lhe agora,
mamãe, porque não mais suportarei os repelões tão comuns a vocês, mas que tanto
ferem a mim.
A cada tentativa, apenas ten-ta-ti-vas de respeito ou amor incondicional,
arrancavam-me opulentos tufos de lágrimas e desterro. Vinham-me da alma, se
digna eu fui para ter uma alma. Perdão por tudo, mamãezinha, mas não pude
permanecer em esfacelamento nas gretas de corpos como o teu, desconhecida como
sujeira dentre irregularidade de madeira nobre.
Receba minhas palavras como misericórdia. Busquei entendimento na idade da tua
aparência, nas formalidades da tua palavra, nos teus olhos que pareciam vivos.

E se por ventura um irmão nascer, desditoso como eu a você, lhe rogo de joelhos,
mamãe, que permita lixarem a tua madeira. E o aceita.

Um comentário:

  1. muito bem escrito...mt bem vc e teus medos e desejos.
    muito bom!!!

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