quarta-feira, 14 de outubro de 2009

indo & vindo

Acendi uma vela a enfeitar uma grande mesa.

A casa era de madeira. A toalha branca guardou a gordura e a poeira do último encontro.
Quando houvera luz, jantávamos, te oferecia cartas, filmes, cigarros, cama; e o fim da noite vinha, recebido como um abraço sob a coberta que não aquecia.

Talvez demonstre um sorriso transparente; o tato envelhecido das coisas. Ando com frio, na ausência, sem luz.
O cheiro ia se perdendo no vai e vem constante do respirar; começava uma nova fase sem sentir-se; sem marco, sem istmo. O como desvencilhar o sinto das coisas quentes; o alisar macio, agora, sem mãos; o transmitir sem a passagem.
Havia maneira de ir além de não querer isto? De negar-se simplesmente ao aqui e agora? Não havia mais imagem a refletir, não quis, não relembrei, não senti gosto de saudade.

A chama tremeluz, bruxuleando a sombra perseverante das coisas íntimas que inexistem sobre a toalha branco-encardida e madeira velha.
As folham silenciaram ao sopro frouxo do vento, o tempo levou tudo. E porque deixaste vela toalha casa e eu? Sabes que o teor da espera tende a ser eterno quando não há meios de sobrepô-la, ainda que o tato ferisse em desespero o tudo que partia e partia e retornava indo mais do que vindo; mas não era nem sabido. Como na vida em que sempre se dorme (...)

Uma vela, um resto, uma casa de madeira, uma toalha. São conseqüências.

Nada mais do que isto.

aceita-me

Minha mãe... Por favor, mamãezinha...


Na primeira vez te encontrei numa pequena caixa que guardava algumas surpresas com
cheiro de verniz. Reluzia a luz sem brilho da madeira opaca de que era feita.
Quis pegá-la e tê-la e doar-me e pertencer-lhe: assim seríamos como nos foi
designado.
Passaram-te uma nova camada de luz; todavia, o verniz era fino demais e tuas primeiras
farpas dilaceraram meus dedos de algodão. Dedos filiais de algodão.
Não pude brincar, mamãe. Não pude desfazer-me do enovelado que nos tornamos;
não quisera sair da tua pequenina caixa, pois era certo que, a mim
seguir-se-iam desamparo e vergonha fora de ti. Certamente, pensaste que não
iria me ferir porque a tudo observou distante em si: o prosseguir sem pernas da
minha vida.
Mas, observadora eu fui. E de tanto olhar-te escondendo-me em meu pecado
amorfo, descobri que não vivias sozinha. Na caixinha havia muitos outros
companheiros semelhantes a ti; uns corriam porque não gostariam que soubessem
que nada possuíam além de lascas; outros, nada falavam absortos num belo corpo
cinzelado. Nada mais.

Percebi-me espectadora e então, fielmente, acompanhei teus hábitos, tuas
palavras por hora açucaradas por hora acres; mas como segredo nosso: eu sempre
soube que, o imo da tua fala era carne crua, morta e sem gosto. Era madeira.
Amiúde traguei teus valores opacos e tua incrível semelhança com o que lhe
deveria ser alheio. Isso me foi regra. Mas o tempo fazia-se penoso e por muitas
vezes insultei, na minha condição vil, o espelho que me refletia.
Por que sou frágil (...) porque alvura, porque a falta de vértice (...)


Sob o julgo da infância, doei em felicidade extrema muitos pedaços de minha maciez;
dava-me a velhos, transeuntes, feirantes, mendigos, moças da vida... me eram
companhia, me eram escuta e abraço. Assim souberam que, apesar do embaraço e da
leveza em mim, tinha, também, um coração. Um coração extrínseco. Havia como
sê-lo e eu o era. Mas não podia mais fragmentar meu corpo, já quase não me
reconhecia; era terrível querer transmitir-me e ter de silenciar em devota
omissão.

Fui vivendo, mamãe, medindo teu quotidiano quadrado, como o apreciava; queria
deixar a não forma perante a ti e a todos.
Com o tempo notei que ao meu redor, tácitos e afetuosamente faltos, alguns poucos
habitantes (para não dizer sobreviventes), usavam muitas roupas; e isto aprendi
no passado posto que tinha de haver algum modo de conviver e resistir à vida
com seres muito simpáticos, mas de juntas muito duras e pele por demais
espinhosa. As farpas.
Aproximei-me de meus semelhantes, também muito ordinários de olhos empoçados e
ternos. Mostrei-lhes a cara surrada. Estávamos entre nós. Trocamos coberturas
depois de muita conversa e reconhecimento. Não senti dor, não houve ferimento.
Às vezes recebia mais do que dava ou poderia ter dado sem sequer demonstrar
premência.

Cresci.

Os tempos vindouros chegaram. Era tarde. Quis tanto te ter por perto mamãe,
acarinhei tuas farpas, tua rusticidade, quis me adequar à tua vida terçã.
Mergulhei na tua caixinha, embevecida, querendo-te materna, abandonei alegria e
sentido de ser que tão bem me fizeram do lado de fora de ti. Mas algo sempre me
esteve errado. Sentia-me sombria e ordinária ainda que o teu verbo não
acompanhasse tua atitude ou vice-versa. Doeu-me fundo ter desonrado o teu
madeirame bruto e suado com minha vaga delicadeza. Mas escrevo-lhe agora,
mamãe, porque não mais suportarei os repelões tão comuns a vocês, mas que tanto
ferem a mim.
A cada tentativa, apenas ten-ta-ti-vas de respeito ou amor incondicional,
arrancavam-me opulentos tufos de lágrimas e desterro. Vinham-me da alma, se
digna eu fui para ter uma alma. Perdão por tudo, mamãezinha, mas não pude
permanecer em esfacelamento nas gretas de corpos como o teu, desconhecida como
sujeira dentre irregularidade de madeira nobre.
Receba minhas palavras como misericórdia. Busquei entendimento na idade da tua
aparência, nas formalidades da tua palavra, nos teus olhos que pareciam vivos.

E se por ventura um irmão nascer, desditoso como eu a você, lhe rogo de joelhos,
mamãe, que permita lixarem a tua madeira. E o aceita.

mansamente pastam as ovelhas (incompleto)

Mansamente pastam as ovelhas... Mas as ovelhas que vejo estão perdidas; então por estarem perdidas, deixam de ser mansas? Ou não mais pastam? Se sou pastora, quede bom pasto para procriar-me a mim e às idéias? Quede tempo calmo para dar abrigo e alimento a meu rebanho.

Se sou ovelha, pastor não tenho. A ordem há muito tempo, dele, se perdeu. Quede percepção, quede minha comida, meu alento. Mansidão e encontro? Como? Sem guia, sem companhia, sem fé na porcaria de amanhã, que o pastor ausente insiste em dizer que além de ser dia, é novo (...)
Bom mesmo deve ser o tempo. Ser o tempo. Passa logo: cada vez menos de si para nós, cada vez mais de nós para si. O tempo é o bom pastor, o pastor que empurra e oprime com mãos invisíveis e tato irreal. O tempo é boa ovelha, metódica, ansiã de espírito, que sabe ser efêmera como o tempo de sua vida e não hesita em correr e correr: devoção & languidez eternos. Ser o tempo, oras. Pastar mansamente sob o cajado de si mesmo, no mato ou no chão batido, no ar fresco ou no sol férvido, faminta ou saciada.

Seria isso auto-controle, abnegação ou derrelição de si mesmo, do si matéria, do si intangível, perante o desânimo do trágico e enfadonho quo-ti-di-a-no?

Ser, apenas. Sem rumo, sem palavra, sem predestinação ou pós-loucura.

Afinal, pastor tempo e ovelhas? Mas não são as perguntas o alimento do mundo? Como se viveu até hoje, eu não soube de ninguém que comesse ou bebesse somente lançando perguntas; mas que ganharam o pão e o sim como respostas.

Devia haver respeito e sentido mútuo nas coisas. Como se além da alma própria, também possuíssemos uma consciência coletiva, subentendida nas relações que permeiam o tempo, pastor, ovelha e vice-versa.

Talvez por isso o pastor, além de ser mágico, possui mãos luminosas. Somente o pastor que compreende o tempo, pode ser mágico. Logo suas mãos são luminosas ao sabor de seu querer, e suas ovelhas, certamente seriam estrelas, ou raios, ou qualquer coisa que brilhasse, exigindo cuidado e energia no trato diário.

O tempo não é sortilégio, é aprendizado e desentendimento.
O pastor não é sábio ou sagrado, mas simples, muito sofreu.
As ovelhas não são estrelas ou luz, mas apenas testes advindos do aprendizado, resultando em simplicidade e, assim, harmonia & ponto final.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

comumnidade

balas são trocadas como humanos são mortos. usam, caem no chão, próximo:

munições & cadáveres.

a vida não é nada além de um óbvio sonho humano.
vive-se, e isto já basta. acordar é morrer, por isso existem tantos cegos.

vendar-se é uma opção, não se outorga ignorância. mas omitir-se, ainda é sinônimo de paz então abortemos as palavras, amorteçamos a violência das súplicas.

abnegação. e a introspecção, que esta seja uma prece.

enfim, já sei o que é ser. talvez não seja nada, mas prefiro acreditar que já possa ser alguma coisa essa vontade de nada ser. silêncio. volições. silêncio.

é isso, na-da-ser. silêncio.