segunda-feira, 24 de agosto de 2009

digam-lhe


Rogo aos mares e brado aos ventos, na
tentativa incansável de justificar esta brutal paganice de meu cerne. Uma
volição me aplaca, colérica, fazendo-me cegar em lucidez intangível a qualquer
mão complacente ou olhar receoso de pena justa, por todo o mal consumado e
percebido sobre o pequenino e indefeso próximo.
Flutuo, libérrima, sob oceanos repletos de remissão e amor adolescente,
tateando entrega e senilidade em completa devoção.
Contemplei estática o que desde muitos sonhos, desde muitos corpos, vinha
buscando violentamente na doce e frágil convicção de que me pertencia a verdade
incondicional sobre o amor.
E assim foram-me impostas luzes tremeluzentes como toda e qualquer possibilidade
de visão, e me cumpriu espremer os olhos, lacrimejantes em resignação na
penumbra da injustiça e restrição de um consentimento leigo: assim seja, Pai.
E indagando sobre qual espécie de superioridade possuo desdobrando-se em
numerosas faces quanto se possam figurar fundamentadas na incerteza de um
engano é que, por todos os lados, enxergo abandono e cólera. Não pude
esquivar-me antes de deparar com incansáveis abismos onde, em queda, sentia meu
sangue arrebentar comprimindo-me as veias num pranto de criança em desalento.
Estou em pesar.
Estou tristíssima.
Fui incumbida de permanecer silenciosa às luzes incertas e à remissão alheia,
como condição única no perseguir do milagre de que necessito para me completar;
e então, finalmente, entregar-me ao sortilégio de todo o mal que me velou
distante.
Pergunto o porquê de tantos repuxos e feridas latentes ante a espera do
infinito prometido numa tarde de sol em desvario; porque tanta dor, tanto
sofrimento e súplicas num peito que só fez vida ainda que inexpressiva. Num
peito que fez fé a um pico distante e nublado tido por alguns, como paz.
Apenas ódio e muito pecado afloraram em minha humilde seara. Lágrimas gotejaram
em desespero do vórtice insurgido de amor, agora exausto e cambaleante a
percorrer o longo caminho.
A ânsia me foi abortada. Fui compelida a torcer até o último suor ardente, a
pele de uma criança.
A pele de uma menininha.
Há rugas na face de uma menininha.
Há vociferações nos olhos fundos de uma menininha.
Há morte no lençol e palidez nas cores, que permeiam os sonhos de uma
menininha.
E se alguma esperança se edificou na vagueza dolosa de um futuro a vir, foi
porque a enganaram nas armadilhas de um presente em necessidade, dado como mera
prova na participação de um ser humano. O momento em que é roubada a dignidade
tenra de uma alma: a imprestável condição de somente ser um humano.
Sinto como sente aquele a quem foi dado o mergulhar-se. E que encontrou um
vácuo surdo e repleto de erro. Isto também restou.
Restou o imperdoável pecado de ainda não saber, e nada ter além da piedade por
saber-se, justamente, que nada se sabe sobre a vida.
Calo-me.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

vão da porta

Homem... mostra-me.
Antes de palavra, forte palavra, encantamento e línguas; mostra-me.
Flagra-me sentada numa poltrona, lendo Goethe em desterro à escuridão sombreada – cafés e cigarros.

Bata na porta. Dispa-me no susto da tua batida; assim me sinto quando lhe percebo: somente a pele.

E então escorro até a porta – não, antes recolho livros e guimbas velhas pelos becos, incensos e santinhos, sumindo com tudo, enfiando os óculos no armário, o tapete roto ajeito com o pé e, então, abro-a. Espio teus olhos espremidos, assim implorando, assim adentrando e logo me empurro pra algum canto e te dou a entrada.
Você não entra. Fica ali, duro, encarando meu devo-ou-não-devo, enquanto navega no vácuo do entrar-ou-desaparecer. Devagar palpito. Olho teus olhos, já não tens corpo, está impalpável a não ser pelos olhos. Ensaio palavras – en-tre-es-ta-va-es-pe-ran-do-por-fa-vor - e tudo o que me sai são uns olhos esbugalhados e fixos.

Acabo de me lembrar que estou sem calças. Que calcinha eu vesti? Não posso abaixar-me para olhar, não há pescoço nem movimento. "Será a esburacada de 90?", penso. Pelo menos tive bom senso e vesti um camisetão, bem recortado. (...)
Permaneço estática. Penso no cheiro do meu apartamento, penso no que o canto dos olhos dele capta, onde meu corpo não ocupa no vão da porta. Uma poltrona suja? O cinzeiro? Filmes, cartas relidas? Não sei.

A partir daqueles olhos negros, já não tenho casa, passado ou esquecimento. Estou como quem está encapado, mas, pela chuva. Ensopa-me pesando o corpo de tal modo que não consigo mexer o dedo do pé, que neste momento arde nervosamente, pela má distribuição do peso nos membros. Devo estar curva, claro, como poderia estar?

Oh, lembrei-me de que me despiram na sala. Fitava-me nua, minhas curvas incertas e sobressalências, pelos fartos e estranhamente distribuídos. Assim me vias.
Sinto que ele se move. Aproximando e a cada passo deixa consigo uma peça, um vinho tomado dantes, um telefonema. Posso despregar tua pele se quiser, penso e logo calo minha auto-denúncia, ele ouviu meu silêncio. Deixe-me somente o suor, ele sussurra no estreito espaço que agora separa nossas bocas.
Ergue os braços lentamente, quase não percebo, quando toca meu quadril. Tem as mãos quentes e tépidas. Por um instante, deito os olhos no corpo frente ao meu, peito, umbigo e.
Como num solavanco, meus olhos sobressaltam-se e, cabeça-acabeça, nariz-a-nariz. Ele tem olhos, agora, não serenos, mas como jabuticabas. Sim, ele tem olhos aflitos, percebo de leve.
Num longo minuto nos encaramos. Dava para sentir o sangue vibrando. Quis entrar e sentar-me, amêndoas e jabuticabas.

Menino, como te quero, pensava no fundo de toda aquela eternidade no vão da porta escancarada.

Notei, satisfeita, que minhas mãos estavam em seus ombros. Ombros e braços, deslizando lentos e oscilando no calor da pele. Pontadas ferventes em meus seios (...) mas sua boca estava diante da minha, relando e faiscando o desejo. Talvez se nos encostássemos um pouco mais, haveria um estouro. Poderia despedaçar-me ali.

Quando já haviam se passado horas, quando já estavam completamente sugadas até a secura, as jabuticabas, senti gotejar-me a nuca. E então como uma premonição, como uma entrega, como um sentido, ele veio com seus cabelos de cetim; sua boca tocou cálida meu rosto, depois deslizou até meu ombro e ali permaneceu. Tinha os braços agora em minhas costas, pele e unhas. Cheirava a baunilha, o cetim delicado. Enlacei-o como enlaçaria um filho com medo do mundo. E lentamente, flutuando sem saber se ainda tinha pés e pernas, o fui trazendo para dentro de mim, meu sofá arrebentado, minhas guimbas, meus pelos, minhas palavras aleijadas, meu recanto sujo.

Ele não tinha nada além de um poço infindo que marcava seu peito. Eu, nada tinha além da minha miséria e amor empoeirado na estante.
Pedi que me mostrasse, depois da língua, encantamento e palavras trocadas com força. Ele mostrou-me o peito. Assustada, olhei ao redor, haviam lodo, tijolos ensebados e água pingando. Observei-me. Sorri.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

D.

D de derrelição. Uma lucidez obscena, uma golada de álcool e.
Assim me chamas, assim me entendo. ME entendo, porque não fui eu quem observou, portanto tem valor.
Devo ser uma garrafa.
De uma bebida ruim.
Que pertenceu a uma prostituta.

"I call you beautiful". Mas você não tinha.
Não arisca, não arredia, não viva, não casta. Não sou assim.

Me adjetive cada vez mais e mais me construa com os restos que sobraram no fundo da tua gaveta, ou.

Não faça nada. Misture o passado nas sobras de uma feira qualquer e o dê a quem nada tem.

É o que preciso.

as janelas

Um buraco, senhor, uma fresta, ponto, qualquer coisa.
Permita-me ver, ainda tenho olhos.
A terra, o lodo, a escuridão, recobrindo meu corpo (...) Mas eu imploro, me deixem os olhos. Que o tempo endureça que os vermes comam, que minha alma se perca, mas, ainda assim, os olhos.

Como janelas de uma casa, grande ou pequena, habitada ou solitária, com andares, um cômodo (...)
Sempre haverá o fio, o tenro fio, ainda que em outra dimensão, profundidade ou universo, a janela, sim, unindo o meu, o teu, o dele, o inverno a pobreza, a fome.
A janela também a tudo vê. Como imagina todos os olhos, todos os parapeitos, todas as súplicas e rugas na testa; ela está ali. Unindo-nos.

Se você grita, eu te ouço... talvez. Mas te vejo. Tua boca aberta, teu horror, olhos aflitos e inflamados.Não toque meus olhos. Se derrubares meu corpo, se matares minhas convicções ou família, minhas idéias ou cúmplices, meu amor ou peito pulsante, leve tudo, deixe somente o espaço que ocupei ou nem isso, qualquer coisa, até as lembranças, mas me deixe os olhos, as mãos do espírito ainda tateando tudo o que há luz e resignado-se na sombra, já que é eterno e imutável; só fui sou e serei meus olhos.

Pode ir dizendo que limitei demais as coisas, o que será das pernas ou sentidos, ou cheiro, pele, sexo e som.Se me conheceu, onde afundou-se ao jurar-me? Onde se fixou ao repreender-me? O que dilacerou tua noite, quando foste dormir amargo sem compreender o porquê daquilo? O que te perseguiu em cada existência tua, quando esta se deu conta de que a minha havia partido? Par-ti-do?

Foram meus olhos. Olhos alagadiços.

As janelas da casa que edifiquei com o que de melhor eu possuía, ainda que não fosse desprovida de falha e cômodos inacabados, foi tudo, tudo o que pude fazer até cair exausta. E foram os mesmos olhos que fechei, ao lhe entregar este extremo de mim. Também os abri resoluta e inteiramente encaixada ao monte de nada que restou. Mas aí, você abriu as janelas da tua nova morada e a tua riqueza humilde me sorriu. Escancarou-se à minha miséria. Teus olhos se ligaram aos meus, por isso te quis dentro. Tão dentro, mesmo que eu precisasse sair e sucumbir à sarjeta.

Basta-me olhar ao espelho; tua respiração ir e voltar, tua comida queimando, teus pés descalços... não as feche. As janelas.

sábado, 1 de agosto de 2009

semi-diálogo de portas

Amor eu estou doente, preciso de você aqui... – o celular dela vibrou no seu bolso de veludo, estava frio demais para março. O telefone tocou, ele assustou como de costume, enrolou e atendeu gravemente.
- Sim?- me diga Thomas, o que é? Gripe?
-Talvez... Já tomei um chá de hortelã, depois gengibre, me disseram que é ótimo - tossiu pesadamente, virou-se de lado e fechou os olhos.
-Está deitado?- Ela pergunta, um pouco vã, nervosamente vã.
-Estou, estou morto – ele exagera demais, gay demais, imbecil demais.
-Entendo... Por que me chamou de amor?- ela atira, acendendo um cigarro pra tentar calma.
-Por que você o é para...
-Pare!- Carla berra, aliviando-se. - Thomas senta na cama, acende uma luz amarelada no criado-mudo, toma um gole de rum.
-Não entendi- replica Thomas, cinicamente estafado.
-Oh, você entende sim, nós dois entendemos o tempo todo, e nos fazemos de bestas, o-mis-sos (...)
-Acalme-se.
-Não! Desta vez não...

depois que.

Enxugou as lágrimas, os olhos espremidos, rubros e cadentes. Ela não sabia o que dizer, já havia dito tudo, num tapete verde e uma xícara de café preto para não dormir com medo da morte.
Queria sair dali, queria ela, a outra, o seu complemento (...)
Estava sozinha, doente, estática.
-Eu a amo. Não como mais, não durmo, não sobrevivo.
-Deixa o tempo...
-Do que você está falando agora?
-Estou com outra e...
-Cale-se!
-Mas eu te amo, te quero.
-Case-se comigo, me cure, me socialize com você mesma.
-Acalme-se.
-Não há calma, não há nada, estou morrendo! –Enfatizou a morte como saída para convalescência. Queria morrer de fato, por ser gay, por não tê-la, por estar sozinha no mundo.
Havia vômito e papéis amassados ao seu redor. Rugas. Cigarros mal terminados e uma escuridão dentro e fora de si.
Queria escrever algo que fizesse para salvar suas vidas. Pensava que palavras tinham algum poder, e depois daquela poesia, nada mais lhe saiu. A arte também havia partido, com sua vida, seus cabelos e sua alusão de paz, já inexistente.
Na verdade, sabia que nada mais voltaria. Nada. Não entendia o tempo e porque havia tomado tento desse amor somente depois de pisá-lo. Por que não lhe entregou, porque aceitou, porque prometeu castelos e a deixou sem as pernas (...)